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4 de dezembro de 2020Esta é uma história como a de várias famílias: duas pessoas adultas juntas por sentimento e afinidade, um filho, um lar, três animais de estimação, além de sonhos grandes e bonitos. A diferença: o apoio do escritório local da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Pará (Emater) e a presença direta dos agentes do governo do Estado no processo de promoção de cidadania e dignidade e de acesso a políticas públicas.
A Emater de Bujaru, município do nordeste do Pará, emitiu a primeira Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf (DAP) para um casal homoafetivo no Estado. Provavelmente, é uma das primeiras do Brasil dentro dessa classificação, segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
“Vou resumir: ‘extensão rural’ também significa transformar vidas” – Cleide Amorim, presidente da Emater.
As lavradoras Josilene Eliziário (Josi), 28, e Luiza Rosa (Lu), 53, há oito anos vivem em união estável no Sítio Renascer, uma propriedade de mais de 20 hectares nos recônditos de uma das regiões mais interioranas de Bujaru: Ramal do Cantagalo, continuação do Ramal do Santo Amaro, na Região do Igarapezinho.
Em torno da moradia de madeira de poucos cômodos, o lazer é a companhia dos três cachorros (Biju, Dog e Piti), banho de igarapé e olhar as estrelas. O trabalho é com plantio e beneficiamento de mandioca (com foco em farinha d’água), cultivo de maxixe e colheita de açaí nativo. Na atualidade, o sustento maior se origina no Bolsa-Família e no auxílio emergencial.
“Nós somos muito felizes. Somos três seres humanos que se amam demais, como esposas entre si e como mães do nosso filho. Mas não podemos negar que a vida vai melhorar muito com a ajuda real do governo: queremos produzir mais, vender, ter luz, ter mais conforto” – Luiza Rosa (Lu).
O casal é mãe de Wendel Lucas, 8, filho biológico de Josi e socioafetivo de Lu. Ele planeja ser bombeiro. “Quando crescer, quero salvar vidas. Só que as vidas daqui de Bujaru. Não tenho vontade de ir embora porque no Sítio a gente vive a vida sem preocupações”, conta a criança.
Dia a Dia
Do Renascer para a sede do município são cerca de 70 quilômetros. A maior parte do caminho é de estradinha de terra batida, com relevos e declives, margeada por árvores e palmeiras de açaí, manga e pupunha, além de roças de mandioca.
Josi explica que de forma alguma pretendem deixar de ser do campo: “Gostamos de morar no meio da natureza, eu não aguento passar um dia na cidade, só que pensamos lá adiante, pensamos em aumentar as chances do Wendel”, diz. “Fizemos uma lista de conquistas, quando chegar a hora. Na lista tem mandioca, açaí…e piscina natural”, ri.
O Que Muda
A Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) é o reconhecimento oficial, por parte de todos os níveis de governo, de que um cidadão é agricultor familiar ou que aqueles cidadãos são agricultores e compõem uma família. É uma espécie de identidade geral: o documento valida os dados pessoais dos donos da terra, os dados territoriais e produtivos da propriedade e a renda e as atividades do arranjo familiar.
Com a DAP, os agricultores passam a ter acesso a linhas de crédito específicas, a programas sociais de fortalecimento de igualdade de gênero e raça, a oportunidades de trabalho e a mercados especiais, como o da merenda escolar.
A Emater já vem entendendo os interesses da família para elaborar projetos de manejo de açaizais, criação de galinha caipira e piscicultura. O Cadastro Ambiental (CAR) do Sítio será emitido até final deste mês.
“O apoio não vai descaracterizar as tradições, muito menos desqualificar o modo de vivência. Vamos aproveitar o potencial das agricultoras e da propriedade para melhorar as condições de moradia e de produção agrícola, respeitando sempre a cultura e os valores da comunidade” – chefe do escritório local da Emater em Bujaru, o técnico em agropecuária Antônio Corrêa.
Conforme estimativa do profissional, em 2021, será possível solicitação de crédito da Linha Floresta do Pronaf, no valor de até R$ 18 mil. Com mais recursos, elas aumentarão a área plantada de mandioca e executarão extrativismo mais estratégico de açaí.
O Encontro
Lu e Josi são nascidas e criadas na mesma região, por isso se conhecem “desde sempre”. Depois de uma temporada de três anos na capital Belém, Lu voltou, Josi estava solteira e grávida de quatro meses e as duas se apaixonaram. Alguns familiares de Josi nunca aceitaram o enlace.
“É claro que sofremos preconceito. O pessoal fica fazendo comentário maldoso pelas nossas costas. No entanto, isso não enfraquece a gente. A gente sai, a gente dança nas festas, a gente cria nosso filho com todo o amor e toda a honestidade”, comenta Josi.
Lu ressalva: “Em contrapartida, a maioria daqui nos viu nascer, convive conosco, então no geral somos tratadas com normalidade”, analisa.
Para os irmãos José Xavier (Keto) e Saturnino Silva (Popularzinho), delegados sindicais do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) de Bujaru, a história da família Eliziário-Rosa é um exemplo de consagração das novas dinâmicas sociais. Lu e Josi são sindicalizadas.
“Bujaru tem saído na frente no que se refere à igualdade. Não somos um município no qual as pessoas sejam perseguidas ou discriminadas. No Sindicato, diga-se, presidente e vice são mulheres nesta gestão”, relata Xavier.
Saturnino confirma que o próprio Sindicato cada vez mais tem incentivado conscientização e democratização.
“Somos todos agricultores, todos famílias rurais. Os direitos são de todos. O amor não deve ofender ninguém. Ficamos é felizes de acompanhar uma família no rumo do desenvolvimento sustentável da produção e nas vitórias”, conclui.
Casamento
Além de iniciar negócios com açaí, peixe e ave, Lu e Josi começaram a considerar uma cerimônia de casamento, com juiz de paz e assinatura de papel.
“É superimportante celebrar. Será mais uma confirmação da nossa trajetória, da gente como família”, comemora Lu. “Falta a Josi se convencer, porque a Josi é mais discreta e tímida”, atenua a animação, enquanto abraça a companheira.
A festa poderá ter um reforço: a vontade de ambas é incluir Lu no registro civil de Wendel Lucas, pelo argumento de maternidade socioafetiva. O menino não possui o registro do pai biológico.